Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Regionalidade passa por
democracia participativa

FERNANDO DI LASCIO - 16/09/2008


Na análise das possibilidades de se promover o regionalismo sadio que muitos apregoam para o Grande ABC, há de ser considerada a percepção da comunidade no tocante às várias articulações políticas necessárias à implementação de projetos regionais. Isso porque é dessa percepção que pode nascer ou não o respaldo popular necessário para que as planejadas ações coletivas possam ser bem-sucedidas.


Essa é uma questão de suma importância porque não será possível dissociar a sustentabilidade social do conjunto de pré-requisitos indispensáveis a um planejamento integrado visando investimentos públicos comuns a todas as cidades envolvidas em projeto único de desenvolvimento regional sustentável, no sentido de vir a ser este desenvolvimento contínuo, de longo prazo e irrefreável por injunções externas, tais como a mudança de partido no poder em uma das prefeituras locais.


Assim como é óbvio que a matemática da união-faz-a-força faz todo sentido para grupos com os mesmos propósitos, o desejável desenvolvimento articulado para o Grande ABC é obviamente viável e poderá trazer um manancial enorme de novas oportunidades econômicas e sociais para todos na região. Mas só é razoável pensar que essa movimentação regionalista tenha êxito se uma grande parcela da população, suficiente para constituir uma massa crítica com potencial de transformar posturas coletivas, desejar e se envolver com o projeto.


Esse raciocínio tem como pressuposto que a sustentabilidade de um projeto regionalista de médio e longo prazo — com investimentos em programas intermunicipais articulados de desenvolvimento nas áreas econômica, habitacional, educacional, de saúde, de transporte, de segurança pública, de criação de trabalho e renda, de turismo e de integração cultural — não depende apenas de convencer prefeitos e vereadores dos benefícios que essa união pode gerar à população, favorecendo o surgimento de projetos e atitudes administrativas coletivas. Para se obter garantia mínima de que um plano de desenvolvimento regional sustentável atingirá os objetivos programados, será necessário que parcela significativa da população, a referida massa crítica, engendre esforços nessa direção.


Por outro lado, para conseguir agregar de forma organizada grande contingente de cidadãos em torno de um projeto regional, a sociedade deverá ser instrumentada com mecanismos que a permitam acompanhar e participar, de forma igualitária, de todo o processo de elaboração das políticas públicas regionais. Isso inclui desde a definição de metas, passando pelo planejamento estratégico, até que, afinal, a própria sociedade civil, assumindo compromisso expresso de buscar os objetivos preestabelecidos, possa decidir democraticamente sobre qual projeto deve ser implementado pelas administrações públicas atuais e futuras.


Sem o comprometimento efetivo de parcela significativa da população, é difícil imaginar, no atual cenário social, que um plano de desenvolvimento regional, por melhor que seja, possa conseguir o respaldo popular necessário. E, sem esse respaldo, ninguém poderá garantir a consecução dos objetivos de médio e longo prazo desse plano.


Para asseverar esse quadro, não é difícil verificar até onde nossos olhos e ouvidos conseguem alcançar que há um crescente esgotamento da credibilidade do povo nas instituições políticas e judiciais, muitas vezes extensivo aos políticos, à Justiça e à polícia, malgrado o fato de que dentro dessas instituições existam muitas pessoas sérias e do bem lutando pela melhoria do sistema. Mas o sistema, por inércia ou por interesse de grupos dominantes, sempre impõe resistência a qualquer tentativa de mudança ou evolução.


Somando-se o crescente descrédito nas instituições à resistência institucional para se abandonar a zona de conforto do poder,partindo principalmente daqueles que detêm cargos-chave eletivos ou não, é possível compreender as razões do ceticismo quase generalizado disseminado em meio à população. A maioria tem quase certeza de que os representantes que elegeu não vão conseguir promover justiça social nem muito menos encaminhar e manter programas sérios, eficientes e duráveis para resolver as grandes questões nacionais, estaduais e municipais que impedem obter resultados realmente palpáveis e sustentáveis na direção de uma melhoria contínua da qualidade de vida — meta que deve nortear toda e qualquer política pública.


Para confirmar essa assertiva, imagine-se o resultado de uma ampla pesquisa de opinião pública com as seguintes perguntas: Você acha que a maior preocupação dos políticos eleitos é com o povo ou com eles mesmos? A quem serve um partido político: ao povo ou aos políticos que o comandam? Você acredita que a Justiça é igual para todos? Você confia que a polícia vai conseguir acabar com a violência, com o crime organizado e com a corrupção? Todos os sindicatos, ONGs e associações estariam cumprindo seu papel social e satisfazendo plenamente os propósitos para os quais foram concebidos?


Se essas questões fossem formuladas à sociedade, certamente enorme contingente, talvez até mesmo a grande maioria, responderia negativamente a todas, corroborando a evidência de que os mecanismos atuais de representação no Brasil, formatados nos idos do século XIX na França, estão totalmente ultrapassados e esgotados. Assim, muito embora essa fórmula de representação ainda possa parecer eficiente e compensadora para alguns políticos, é, evidentemente, cada vez mais ineficiente e insatisfatória para os eleitores.


O cidadão do século XXI vai precisar ver mudanças e aperfeiçoamentos nos sistemas de representação política antes de começar a acreditar em mais planos e promessas. Se esses aperfeiçoamentos não incluírem uma forma organizada de tomar decisões públicas com o povo, dificilmente serão bem-sucedidos. Esse nó górdio estabelecido no âmbito institucional está diretamente ligado ao encaminhamento das questões sociais e econômicas dos moradores do Grande ABC e certamente precisará ser desatado ainda durante a fase do planejamento estratégico, antecedente à implantação de uma política coletiva de desenvolvimento orquestrado para a região.


Surge, portanto, a necessidade de se avaliarem alternativas viáveis para superação das crises de credibilidade institucional e de ceticismo generalizado, como forma de viabilizar a constituição de uma massa crítica necessária para dar respaldo popular a um projeto de desenvolvimento integrado e sustentado, inclusive socialmente, para o Grande ABC. Dentre as possíveis respostas para esse enigma há pelo menos uma que merece ser analisada ao longo dos próximos anos porque seu ponto de partida encontra-se na própria Constituição brasileira, que no Parágrafo Único do seu Artigo 1º determina: “Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido por seus representantes eleitos ou diretamente na forma prevista nesta Constituição”.


O destaque à conjunção alternativa (ou) foi dado porque compreender exatamente a razão da sua inclusão no texto constitucional pode significar muito para qualquer projeto regional. Normalmente a conjunção ou é utilizada quando se deseja fornecer opções excludentes, quais sejam: ou você vai de trem ou vai de avião, ou você quer suco de laranja ou você quer de limão. É uma ou outra coisa e a escolha de uma, automaticamente, exclui a outra. É com esse mesmo sentido que o ou foi inserido no artigo inaugural de nossa Constituição. Os constituintes quiseram deixar bem claro que se todo o poder emana do povo, o povo pode exercer esse poder ou por seus representantes eleitos ou diretamente.


O plebiscito permite ao povo exercer
sua soberania e Santo André foi
pioneira nessa democracia direta


Mas como pode o povo exercer diretamente a soberania popular, que é o nome que se dá a esse poder que dele emana? Como exercer diretamente o poder sobre o Poder Executivo? O poder sobre o Poder Legislativo? O poder sobre o Poder Judiciário? A resposta está dada na própria Constituição brasileira, que no Artigo 16 determina que a soberania popular seja exercida por “plebiscito, referendo e iniciativa popular”.


Temos, então, que o plebiscito é um dos três instrumentos constitucionais que permitem ao povo exercer de forma direta a democracia participativa, em alternativa excludente da vontade de seus representantes eleitos, quais sejam dos vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidente.


Mas, até aí, só parte da questão foi equacionada. Na verdade, das sete cidades do Grande ABC, apenas em Santo André uma bem-sucedida pressão social conseguiu sensibilizar a Câmara Municipal a regulamentar a realização de plebiscitos e referendos, fazendo-o de forma inovadora e pioneira no Brasil ao introduzir na Lei Orgânica Municipal um mecanismo efetivo de democracia direta. Nas outras seis cidades o plebiscito e o referendo ainda são como um carro novo sem pneus que, nesse estado, não pode conduzir ninguém a lugar algum.


De qualquer forma, a situação pode e deve mudar porque é inadmissível que na era da Internet, do telefone celular e da TV digital os mecanismos de comunicação entre representantes e representados, em todas as instâncias da representatividade política, continuem iguais aos do tempo das carruagens. É certo que a evolução terá de passar por processo de criação e institucionalização de novos meios de comunicação do povo com os poderes constituídos. Mas, mesmo depois de serem institucionalizados, esses mecanismos de comunicação só se legitimarão se permitirem a inclusão no processo político de qualquer cidadão de bem interessado no coletivo.


Nesse mesmo sentido, precisarão ser revisados os atuais mecanismos de participação nos vários conselhos de governo onde hoje atuam os chamados representantes da sociedade civil, que encenam uma representatividade que de fato não existe, posto não haver procuração ou mandato que lhes autorize a falar, votar ou decidir em nome da sociedade civil. Agravando esse quadro, na maioria dos casos o único verdadeiro compromisso desses conselheiros é com a associação, o movimento social ou a entidade que os indicou.


A reorganização da sociedade visando uma participação efetiva, ordenada e crescente de cidadãos nos processos decisórios dos vários níveis de governo e do Legislativo será a única resposta certeira para o necessário resgate da credibilidade da população nas instituições políticas. E, também, para se estabelecer a sustentabilidade social em qualquer projeto de política pública.


Diante disso, é possível enxergar várias maneiras de estimular a participação crescente de cidadãos de bem no processo político. Destaca-se, por exemplo, o aperfeiçoamento dos mecanismos democráticos estabelecidos para conquista dos postos de comando nos partidos políticos, nas associações, nos sindicatos etc., de forma a facilitar e até estimular o surgimento de novas lideranças e de dar maior transparência ao exercício dos mandatos e, também, aos meios utilizados para conquistá-los.


De volta à realidade presente, é importante lembrar que até aqui a única interface de comunicação existente entre sociedade civil e poderes constituídos opera e se encerra exclusivamente no processo eleitoral. Entre uma eleição e outra, os únicos meios oficiais de comunicação entre o cidadão, o prefeito e os vereadores são associações, sindicatos, partidos, movimentos populares etc., que são os chamados grupos de pressão porque ordenados pelos interesses específicos de seus componentes, ou lideranças, e não pelos interesses de toda a sociedade.


Pode-se inferir então que, para estimular a participação cidadã no processo político visando resgatar a credibilidade nas instituições e promover a sustentabilidade social, também são necessários e urgentes o surgimento de mais lideranças civis e o estabelecimento de novas interfaces de comunicação da sociedade civil com os poderes constituídos. Com esse propósito, deverão ser criados conselhos populares e outras organizações da comunidade que consigam obter o necessário respaldo popular e que se legitimem como veículo de comunicação nos dois sentidos, entre a sociedade civil e as autoridades constituídas.


Portanto, uma estrada segura para a melhoria contínua da qualidade de vida — bússola que deve orientar qualquer política de desenvolvimento articulado e sustentável que se idealize para o Grande ABC — passa obrigatoriamente pela criação e aperfeiçoamento de mecanismos que permitam captar e transmitir com fidelidade a expressão da opinião pública, que possibilitem ao povo organizado participar efetivamente das decisões de governo e do Legislativo, pelo menos nos assuntos mais relevantes para a cidade e para a região. E só então, através de cada voto nessas novas instâncias de representação, obter compromissos pessoais com os objetivos sociais estabelecidos pela vontade da maioria. Este é o conceito básico de sustentabilidade social aqui considerado.


Ocorre que em todos os países republicanos e democráticos existem apenas três instrumentos pacíficos para o povo impor seu poder soberano: o voto no candidato, o plebiscito e o referendo. Mesmo em nossa legislação existem casos obrigatórios para o exercício da democracia direta previstos na Constituição Federal e na Constituição do Estado de São Paulo. Nas duas está determinada a obrigatoriedade de plebiscito regional para o caso de cidades contíguas que desejem promover fusão ou incorporação entre si.


A Constituição brasileira diz no Artigo 18, § 4º: “A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de municípios preservarão a continuidade e a unidade histórico-cultural do ambiente urbano… e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas”. No mesmo sentido, a Constituição do Estado de São Paulo determina no Artigo 145: “A criação, a fusão, a incorporação e o desmembramento de municípios… dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos municípios envolvidos…”.


No mundo globalizado, onde existe clara tendência pela conjugação de esforços para enfrentar a concorrência econômica e promover o desenvolvimento conjunto e articulado de corporações, cidades, regiões e até países, esse procedimento não representa nenhuma novidade. Veja-se a União Européia, o maior de todos os exemplos de sucesso da união de forças, onde dia a dia se produz mais e mais benefícios aos povos dos países membros. Verifica-se neste exemplo que quem está de fora quer entrar e quem está dentro não quer sair.


Na União Européia o desenvolvimento conjunto é discutido, planejado e ordenado através do Parlamento Europeu, mas as decisões mais importantes são encaminhadas para que as sociedades envolvidas dêem a palavra final, o que constantemente é feito por meio de plebiscitos. Isso porque lá, como deve ocorrer em qualquer país realmente democrático, a soberania popular é respeitada, exercitada e acatada.


Não há dúvida, portanto, de que sentimentos bairristas, xenofóbicos e preconceituosos entre vizinhanças estão sendo gradativamente substituídos por uma visão estratégica global. Também é certo que essa mudança de comportamento produz excelentes resultados para as comunidades que conseguem uma fórmula inteligente de se articular. Observadas, portanto, as premissas constitucionais apresentadas e seguindo-se a linha de raciocínio em que:


bullet_quadrado O respaldo popular será necessário para se promover a sustentabilidade dos projetos regionais.


bullet_quadrado A sustentabilidade social de uma política pública depende de comprometimento efetivo da população.


bullet_quadrado O envolvimento e o comprometimento do morador do Grande ABC com uma política regional articulada devem ser antecedidos de ampla e aprofundada discussão sobre as vantagens e desvantagens de um eventual empenho coletivo de forças entre as sete cidades.


bullet_quadrado Ao final dessa discussão, a própria sociedade local deve decidir qual caminho seguir para se promover o desejável crescimento acelerado e sustentável da qualidade de vida na região.


bullet_quadrado O exercício da soberania popular para imposição da vontade coletiva só é possível através de um dos dois mecanismos republicanos, democráticos e legais destinados a este fim, que são o plebiscito e o referendo.


Podemos concluir, finalmente, que a fórmula ideal para promover o espírito regionalista de que o Grande ABC tanto precisa é fazer com que seja firmado um comprometimento efetivo da comunidade com a execução de determinados programas de desenvolvimento regional, para os quais a própria sociedade civil ajude a formular metas e diretrizes e ao final, via plebiscito, decida por onde encaminhá-las.


A fusão das sete cidades é o único
caminho para um desenvolvimento
regional articulado e sustentável


Como a fusão entre cidades é um dos únicos casos constitucionais em que se impõe a obrigatoriedade de consulta à população regional por meio de plebiscito, talvez a discussão sobre a fusão das sete cidades do Grande ABC seja o melhor caminho, senão o único, para se conseguir estabelecer um senso comum e compromisso da população em torno de projetos de médio e longo prazos voltados a promover um desenvolvimento regional articulado e sustentável.


Se isso vier a acontecer, e não demorar muito, essa cidade já nasce ocupando o posto de terceira maior economia municipal do País, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro. Uma cidade com enorme potencial industrial, comercial, tecnológico, cultural, de turismo e de prestação de serviços. Uma cidade com cerca de 40 vereadores, capaz de eleger a terceira maior bancada municipal no Congresso Nacional com até sete deputados federais e a segunda maior na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, com oito deputados estaduais.


E mais importante do que isso tudo, tendo a maioria dos mais de 2,5 milhões de habitantes comprometida com o processo de fusão e de desenvolvimento regional sustentado, essa cidade rapidamente poderá se tornar referência continental de crescimento acelerado na qualidade de vida. Essa nova megalópole pode vir a ser a cidade dos abecedenses. Uma cidade chamada ABC!


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